13/05/2016
REVISTA EXAME
Por Renata Vieira
Oficialmente, o Estado do Pará tem 1,2 milhão de quilômetros
quadrados. Mas, se fossem levados em conta os títulos de posse de terras
registrados nos cartórios paraenses, a extensão territorial do estado somaria
bem mais do que seu atual perímetro.
Na divisa de Mato Grosso com Rondônia, recentemente, foi identificado um
corredor de 500 quilômetros quadrados que os mapas atribuíam a Mato Grosso, mas
que na verdade pertence a Rondônia. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, existem pelo menos outras 30 áreas em divisas
estaduais onde não há consenso sobre o traçado das fronteiras.
No entanto, confusão fundiária no Brasil, que beira o anedótico, pode estar
próxima do fim. O dia 5 de maio foi o limite do prazo para que todos os
proprietários rurais registrassem suas terras no Cadastro Ambiental Rural
(CAR), plataforma digital de anotação de toda a área agrícola do país.
“O cadastro vai permitir que se associe um CPF ou um CNPJ a cada metro quadrado
do Brasil, tarefa quase impossível hoje”, afirma o biólogo Fernando Reinach, um
dos mais respeitados especialistas do país em tecnologia para o agronegócio.
Criado há quatro anos com o objetivo de medir o passivo ambiental brasileiro, o
CAR já teve seu prazo de encerramento adiado uma vez e, novamente, setores do
agronegócio pediam uma prorrogação da data. Até o fechamento desta edição, no
dia 2 de maio, o Ministério do Meio Ambiente, responsável pelo cadastro,
afirmava que o prazo não seria estendido.
E as informações colhidas até então indicam que a iniciativa já é um sucesso.
Cerca de 308 milhões de hectares já estão registrados — uma fatia de 77% da
área estimada como passível de cadastramento.
A maioria das grandes propriedades foi incluída na base do governo — cerca de
2,8 milhões num universo de mais de 5 milhões —, mas ainda há um número
significativo de pequenas fazendas que não se cadastraram, sobretudo na Região
Nordeste.
Na implantação do sistema do CAR, foram gastos 838 milhões de reais — 82%
vindos do Fundo Amazônia, formado por doações da Petrobras e dos governos da
Alemanha e da Noruega, e o restante é verba do Ministério do Meio Ambiente.
Na plataforma digital, os fazendeiros precisam informar o tamanho, as divisas e
a composição de suas terras — indicando nas imagens de satélite as áreas
produtivas e as de vegetação, conservadas ou degradadas. Os dados preliminares
mostram que há mais vegetação nativa nas propriedades rurais do que o esperado.
Mas estudos estimam que 24 milhões de hectares de vegetação precisam ser
recuperados — informação que não leva em conta que, só no ano passado, quase
600 000 hectares de floresta amazônica foram desmatados, uma alta de 16% em
relação a 2014.
O levantamento permitirá que finalmente o Código Florestal — legislação que
fixa os limites de uso da terra em cada um dos biomas e indica onde a vegetação
nativa deve ser preservada — seja posto em prática.
Pela lei, atualizada em 2012, os agricultores e pecuaristas são obrigados a
manter não apenas trechos de mata ciliar à beira de rios e córregos mas também
cotas de vegetação que variam de 20% a 80%, dependendo da região.
Embora já tenha se comprometido internacionalmente a restaurar 12 milhões de
hectares de florestas, o governo brasileiro ainda não sabe em que medida o
código vem sendo cumprido e, por consequência, qual é o tamanho do passivo
ambiental rural. Num cenário econômico débil, o agronegócio ainda tem sido
fonte de boas notícias.
Só em março a agropecuária foi responsável por mais da metade das exportações
brasileiras. Na seara da soja, a previsão é que a safra nacional cresça 4%
neste ano e reforce o primeiro lugar do Brasil na lista dos maiores
exportadores da commodity no mundo. A essa extraordinária capacidade do campo
de avançar em meio às dificuldades deve se somar agora um novo patamar de
cumprimento da lei.
Mais da metade dos produtores cadastrados no CAR aderiu voluntariamente ao
Plano de Regularização Ambiental, que consiste na recuperação ou na compensação
de áreas verdes. Isso inclui a possibilidade de produtores com déficit de
vegetação comprarem áreas em propriedades superavitárias.
O fato é que não se trata apenas de cumprir a lei, mas também de formar um
banco de dados que facilite o planejamento de políticas públicas. “Ao conhecer
cada propriedade, poderemos direcionar investimentos de forma mais eficiente e
sustentável”, afirma Arnaldo Carneiro Filho, diretor de Gestão Territorial
Inteligente da Agroicone.
Risco calculado
As informações do CAR também servirão a outros elos da cadeia do agronegócio.
Nos últimos anos, informações socioambientais têm sido essenciais para a
assinatura de contratos entre produtores do campo e empresas, como frigoríficos
e processadoras de grãos.
Sob a mira da Justiça, de organizações não governamentais e, cada dia mais,
da opinião pública, as grandes empresas do setor vêm adotando medidas para
garantir que os fornecedores cumpram a lei e que a matéria-prima de seus
produtos seja totalmente rastreável.
O frigorífico JBS, que compra cerca de 40 000 cabeças de gado diariamente em
todo o país, tem desde 2010 um sistema que reúne informações sobre 70 000
fazendas. O objetivo é calcular o risco das operações em campo, identificando
áreas embargadas por desmatamento ilegal ou relacionadas a trabalho escravo,
por exemplo.
Na varejista Walmart, a lógica é a mesma. Em 2012, a companhia passou a adotar
um software que reúne e cruza esse tipo de informação para repreender
fornecedores de carne em caso de ilegalidade.
Mais recentemente, a divisão de biocombustíveis da petroleira britânica BP, que
tem três usinas de etanol no Brasil, contratou uma consultoria para realizar o
preenchimento do CAR para cerca de 400 produtores de cana, espalhados em
200 000 hectares arrendados nos estados de Minas Gerais e Goiás.
“Daqui para a frente só arrendaremos áreas novas que estiverem cadastradas no
CAR”, diz Mario Lindenhayn, presidente da BP no Brasil. Nas instituições
financeiras, o cenário não é diferente.
A partir de maio de 2017, os bancos estarão impedidos de fornecer linhas de
crédito rural a quem não apresentar o CAR — e, desde o ano passado, estão
autorizados a usar sistemas de sensoriamento remoto, como imagens de satélite,
para fiscalizar os tomadores de crédito. Afinal, eles podem ser diretamente
responsabilizados pelos eventuais danos ambientais que financiarem.
“Quanto mais informações, menos incertezas e menor o risco”, afirma Luiz Fernando
do Amaral, gerente de responsabilidade socioambiental do Rabobank, um dos
principais bancos agrícolas do país. Até que o mapa do agronegócio esteja
suficientemente claro para governos, empresas e os próprios produtores,
incongruências devem aparecer.
Isso porque a estimativa da extensão de terra agricultável e o número de
imóveis rurais existentes no país vêm do Censo Agropecuário de 2006, último
desse tipo realizado no Brasil. A nova edição, que deveria ser realizada neste
ano, foi congelada por falta de verba para o IBGE. Também por isso as
informações registradas no CAR terão de ser validadas pelos governos estaduais.
É deles a responsabilidade de elaborar os planos de regularização ambiental que
indicarão as áreas de vegetação degradadas a ser recuperadas. Antes disso,
porém, os limites de propriedades que estiverem sobrepostos e a
incompatibilidade entre o CAR e os registros fundiários do Incra deverão ser
investigados, auditados e retificados pelos 27 estados da Federação.
O tempo que isso pode levar, como muita coisa no Brasil, é uma incógnita. Ainda
assim a expectativa é que, tal como os dados do desmatamento do bioma
amazônico, que vêm sendo amplamente divulgados nos últimos 12 anos, os dados do
CAR possam vir a se tornar a mais completa base pública de informações sobre a
terra no Brasil.
De acordo com o Serviço Florestal Brasileiro, a transparência dos dados é um
dos objetivos do processo, mas não serão violadas regras de sigilo patrimonial
e pessoal. “Qualquer um deveria poder olhar os dados do CAR e enxergar as
conexões que existem entre a terra, o registro digital e o que está no papel
dos cartórios”, diz Reinach.
O caminho é longo, mas o primeiro passo já foi dado. Quem sabe seja apenas uma
questão de tempo para que a expressão “terra de ninguém” saia de vez do
vocabulário do Brasil rural.
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