Página22: Virada de jogo

Agroicone é uma das entrevistadas para a reportagem.

Mato Grosso aposta na restauração florestal para apagar a fama de vilão do desmatamento da Amazônia e garantir mercados para o agronegócio

Mato Grosso aposta na restauração florestal para apagar a fama de vilão do desmatamento da Amazônia e garantir mercados para o agronegócio

Por Sergio Adeodato

Fonte: Página 22

De Cuiabá, capital mato-grossense, são 927 quilômetros por terra até Querência (MT) [1], um dos 100 municípios de maior renda per capita do País. No longo percurso com intenso tráfego de caminhões, pastagens e cultivos de grãos a perder de vista imperam no lugar da vegetação nativa, restrita a nacos isolados de mata aqui e acolá. De lado a lado no caminho a dinâmica da paisagem retrata a força do agronegócio e seus impactos. Após 10 horas de estrada, o Cerrado que restou se torna mais alto e frondoso. E surgem no horizonte palmeiras e árvores de grandes copas, sinal de que um pouco mais adiante já estaremos em território amazônico. No destino final, a cidade de 15 mil habitantes, ruas largas, feições europeias e sotaque gaúcho não esconde a origem dos que ali chegaram há três décadas para ocupar terras, derrubar a floresta e produzir.

No comércio, os altos preços condizem com a riqueza circulante, gerada nos campos do entorno. Ninguém duvida: a imensidão das propriedades rurais dá uma sensação de dever cumprido para quem migrou de longe e construiu tudo do zero, aproveitando cada palmo de terra como patrimônio para filhos e netos. Mas, ao mesmo tempo, percebe-se um sentimento de orgulho ferido, porque o passivo ambiental dessa história expõe uma imagem negativa para a sociedade e para o mercado. Em 2008, Querência foi incluída pelo Ministério do Meio Ambiente na lista negra [2] dos municípios que mais desmatam a Amazônia – o que significou barreiras para crédito e risco de sanções comerciais. Três anos depois, após ações para reduzir o desmatamento, o município conseguiu livrar-se das restrições.

Mas a mancha de vilão do desmatamento não desapareceu por completo. Em seu território, 43% ocupado por reservas indígenas, há 248 propriedades rurais embargadas pelo Ibama, porque não obedecem às leis ambientais. O desafio de virar o jogo e mudar a imagem tem mobilizado prefeitura, fazendeiros, empresas, sindicatos e organizações não governamentais em torno de soluções. Na iniciativa “Querência + Paisagens Sustentáveis”, o plano é recuperar 2,7 mil hectares de mata na beira de rios até 2019, para que as propriedades sejam desembargadas e possam produzir. “Queremos trabalhar com segurança, porque é possível conciliar conservação ambiental e produção agrícola”, enfatiza Marcelo Marinho, presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

Não por acaso a sigla APP, Área de Preservação Permanente [3], virou hit no vocabulário por aquelas bandas – inclusive entre os produtores rurais mais antigos e resistentes. De igual modo, o termo “restauração florestal” se torna mais presente em região onde para muitos a grandeza da floresta parecia não ter fim. Em meio ao milharal que aguarda a colheita para dar lugar à soja a partir de novembro, o fazendeiro Neuri Wink é taxativo: “Nenhum produtor vai querer colocar mato de volta em terras produtivas de alto valor e ótimo relevo, clima e solo para agricultura, mas a preservação de nascentes não se discute”. Como um dos pioneiros que desbravaram a região, Wink deixou a cidade natal de Victor Graeff (RS), de colonização alemã e italiana, e chegou ao novo eldorado amazônico em 1988. “Antes podíamos desmatar até 80% da área, em algumas situações”, conta o produtor, dono da Fazenda Certeza – “certeza de que com muito trabalho faríamos acontecer”.

Marcada pela tradição gaúcha do cooperativismo e pelos valores da comunidade luterana, a aventura produtiva na floresta exigiu investimento em estrada, energia, banco, hospital, escola, telefone. “Quando cheguei, as ruas estavam apenas demarcadas no chão”, diz Wink, que inicialmente ocupou 670 hectares e hoje tem área três vezes maior. Cerca de 30% é mata que protege a beira do Rio Betis. “Aqui tem um jatobá e mais na frente tamboril, mamoninha e ipê-roxo”, aponta o produtor, ao mostrar a sua APP com árvores já altas após seis anos de recuperação.

Durante o trabalho, baseado no plantio de sementes e mudas, nascentes antes sufocadas por pastagens minaram. Apesar disso, o antigo fazendeiro é resistente quanto ao benefício da floresta para o clima: “O desafio está em empregar práticas de conservação do solo, nosso maior patrimônio”. Se alguns fazem a restauração florestal apenas para cumprir a lei e evitar encrenca com os órgãos ambientais, outros enxergam ganhos a longo prazo. “É melhor para todos usar menos solo sem derrubar tudo”, recomenda Cláudio Dalbello, produtor no Assentamento Pingo D’água, em Querência, ao ver a situação do vizinho “que hoje nem sequer tem madeira para colocar uma antena de TV”. Com auxílio do filho, Cristian Mariani, formado em gestão ambiental, o proprietário implantou o Sistema Agroflorestal (SAF) [4] com espécies frutíferas. E a chegada da energia elétrica permitiu puxar água para o gado beber longe do rio. “A APP foi restaurada e cercada; ninguém mexe.”

No Assentamento Brasil Novo, Armando Menin, dono do Sítio Modelo, mantém soja e gado em consórcio com seringueiras e uma floresta de espécies frutíferas e madeireiras plantada onde antes só tinha pasto. O produtor fornece frutas para o proprietário vizinho, Aldo da Rosa, fazer o beneficiamento em polpa e assim garantir renda o ano todo. “O clima mudou e quem só plantou soja está sofrendo”, afirma Menin, que se fixou na Amazônia por meio de grilagem [5] de terras, desmatou e vendeu a área para conseguir o atual lote, onde hoje tem soja, pupunha, caju, seringueira, pequi e mangaba. “Quem não plantou árvores para diversificar a renda e viver melhor, além de não ter sombra e fruta para fazer um suco, está trabalhando de peão nas grandes fazendas”, diz Rosa, ao se referir à realidade socioambiental nos assentamentos rurais [6].

“É preciso fortalecer a agricultura familiar, pois há 40 mil hectares de soja plantados em assentamentos da localidade”, conta Cecilia Gonçalves Simões, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A instituição dá apoio técnico ao município para a governança socioambiental, mapeamento dos passivos e elaboração de um plano participativo para solucioná-los. Uma das tarefas é o registro das propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR). “Todo mundo sai ganhando quando o território inteiro é reconhecido pela legalidade e sustentabilidade”, completa Simões.

Na Fazenda Tanguro [7], onde o Ipam mantém uma base científica, experimentos avaliam a eficiência de seis diferentes métodos de restauração florestal: plantio de sementes nativas; cultivo de mudas; regeneração natural sem intervir na mata; e transposição de folhas para cobrir o solo e recuperar áreas degradadas, por exemplo. Também são formadas “ilhas de vegetação”, onde os esforços de plantio se concentram em um ponto central, para se obter uma resposta mais rápida, com posterior aumento por meio de dispersão de sementes. Por fim, em outra parcela foram instalados “poleiros” de madeira para facilitar o pouso de aves que comem os frutos e espalham as sementes.

Nessa linha, pesquisadores estudam no local o papel dos mamíferos, especialmente o das antas, na regeneração natural da floresta. Elas são monitoradas por câmeras fotográficas em área degradada por fogo e a cada três meses as fezes são coletadas para análise. Em 62 amostras, foram encontradas cerca de 2,7 mil sementes de vários tipos. Isso permite inferir como os serviços ambientais podem ser comprometidos com o declínio das antas decorrente da caça e do desmatamento. Assim, ações para conservação da espécie poderão ser estratégicas no contexto de um futuro mercado de crédito de carbono e de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).

Em paralelo, há pesquisas sobre como o uso da terra interfere no clima da região e sobre qual a função das matas para a proteção de nascentes e para a dinâmica de nutrientes do solo nos cultivos. “O objetivo é fornecer elementos científicos para a tomada de decisão e políticas públicas”, explica o pesquisador Divino Silvério. “Já existe conhecimento, mas falta pôr em prática por meio de incentivos, porque o custo do que dá certo é alto.”

O movimento de Querência integra-se ao plano estadual de até 2020 repor 2,9 milhões de hectares de floresta – área superior ao território de Sergipe – como medida-chave para Mato Grosso cumprir o que apresentou à ONU na reunião de Paris sobre clima, em dezembro. Em abril, foi criado um comitê para colocar as metas em prática. “Será necessário definir áreas críticas e fomentar a cadeia produtiva da restauração, prevendo planos regionais e modelos que gerem retorno financeiro”, afirma Elaine Corsini, representante da Secretaria de Estado do Meio Ambiente.

“Com o novo Código Florestal, as regras se tornaram claras e os produtores ficaram mais abertos ao diálogo para a adequação, mas é preciso acelerar a validação do CAR para se saber quanto será recuperado e como”, avalia Lucélia Avi, analista de meio ambiente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato).

As ações compreendem também a redução de conflitos fundiários. “O compromisso estadual atraiu o interesse de investidores internacionais, entre eles o governo norueguês”, revela Daniela Mariuzzo, representante do IDH – instituição holandesa que investe na garantia de origem sustentável para a soja que entra na Europa pelo Porto de Roterdã.

Segundo Laura Antoniazzi, pesquisadora da Agroicone, “as soluções devem acomodar as projeções de crescimento da produção agropecuária [8]”. Assim, considerando a restauração florestal e técnicas para maior produção sem desmatamento, o investimento necessário para atingir as metas estaduais chega a US$ 9 bilhões em dez anos – custo que pode ser bancado pelo retorno financeiro dos projetos. “Para ser viável, a reposição de árvores tem de ser incorporada à conta da atividade produtiva principal, e não vista como uma despesa isolada.”

Plantar árvore não é tão simples como se imagina. A ênfase deve estar na busca por “paisagens integradoras e inteligentes”, conforme diz Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA). Mais que isso: na Amazônia, “é necessário superar o lugar-comum de dizer que a floresta se regenera sozinha”. Isso depende da região, do relevo, do clima e do uso anterior do solo. Estudos já comprovaram: em áreas de antigas pastagens, conforme o estágio de degradação, só cresce naturalmente o capim. Ele precisa ser controlado e substituído por árvores nativas. “Devemos olhar para o que já está dando certo”, recomenda Junqueira, ao se referir à técnica de semeadura direta ou “muvuca”, em que ocorre o plantio de um mix de sementes – e não de mudas – com viabilidade técnica, maior aderência cultural e menor custo [9].

A inovação se desenvolveu nos últimos dez anos a partir de uma demanda dos índios: a proteção dos rios que correm no Parque Indígena do Xingu, cujas nascentes – situadas fora da reserva – encontravam-se ameaçadas pela pecuária extensiva. A campanha Y Ikatu Xingu se desdobrou no trabalho que hoje mobiliza 420 coletores indígenas e agricultores familiares ligados à Associação Rede de Sementes do Xingu, com capacidade produtiva de semear 500 hectares por ano. E inspira soluções para o País plantar floresta e cumprir as metas climáticas.

Experiências se multiplicam no Pará

Com 84 mil quilômetros quadrados, o dobro da área do Estado do Rio de Janeiro, o município de São Félix do Xingu, no Sul do Pará, tem o maior rebanho do País – 2,2 milhões de cabeças de gado. Foi um dos campeões do desmatamento na Amazônia e agora se destaca como palco de projetos que demonstram ser possível produzir com menor impacto ambiental. “Na região, disseminar boas práticas na cadeia da pecuária é o caminho para reduzir o desmatamento e promover a restauração florestal”, analisa Francisco Fonseca, coordenador da iniciativa Pecuária Sustentável – do Campo à Mesa, da The Nature Conservancy (TNC).

Em troca de assistência técnica e de reconhecimento por parte de compradores como a indústria frigorífica Marfrig e a rede varejista Walmart, parceiros do projeto, produtores rurais assumiram o compromisso de zerar o desmatamento, fazer o Cadastro Ambiental Rural e adotar um plano de boas práticas. As medidas incluem a recuperação de áreas degradadas para pastagem e a restauração da floresta para proteger rios e nascentes. Cerca de 1,2 mil hectares de APP estão sendo isolados do gado.

No município, uma segunda frente de trabalho mobiliza a agricultura familiar para a expansão dos cultivos de cacau como estratégia de restauração florestal nas áreas de reserva legal. A planta, nativa das regiões tropicais da América do Sul, precisa da sombra das demais árvores para crescer e produzir. “E está sendo consorciada com a pecuária de corte e leite na região”, informa Rodrigo Freire, coordenador de floresta e clima da TNC.

O objetivo é repetir na Amazônia o que aconteceu na Mata Atlântica do Sul da Bahia, onde o cacau sombreado pela floresta teve importante papel na conservação. Em São Félix do Xingu, 82 famílias de agricultores recebem auxílio técnico e estão substituindo pasto pelo fruto do chocolate, em alta no mercado. Com a produção média de 1 tonelada por hectare ao ano, é possível obter renda complementar de R$ 10 mil no período. Até 2020, o plano é expandir os atuais projetos demonstrativos e atingir 1 mil produtores, totalizando 5 mil hectares de cacau.

Por Sergio Adeodato

Fonte: Página 22

De Cuiabá, capital mato-grossense, são 927 quilômetros por terra até Querência (MT) [1], um dos 100 municípios de maior renda per capita do País. No longo percurso com intenso tráfego de caminhões, pastagens e cultivos de grãos a perder de vista imperam no lugar da vegetação nativa, restrita a nacos isolados de mata aqui e acolá. De lado a lado no caminho a dinâmica da paisagem retrata a força do agronegócio e seus impactos. Após 10 horas de estrada, o Cerrado que restou se torna mais alto e frondoso. E surgem no horizonte palmeiras e árvores de grandes copas, sinal de que um pouco mais adiante já estaremos em território amazônico. No destino final, a cidade de 15 mil habitantes, ruas largas, feições europeias e sotaque gaúcho não esconde a origem dos que ali chegaram há três décadas para ocupar terras, derrubar a floresta e produzir.

No comércio, os altos preços condizem com a riqueza circulante, gerada nos campos do entorno. Ninguém duvida: a imensidão das propriedades rurais dá uma sensação de dever cumprido para quem migrou de longe e construiu tudo do zero, aproveitando cada palmo de terra como patrimônio para filhos e netos. Mas, ao mesmo tempo, percebe-se um sentimento de orgulho ferido, porque o passivo ambiental dessa história expõe uma imagem negativa para a sociedade e para o mercado. Em 2008, Querência foi incluída pelo Ministério do Meio Ambiente na lista negra [2] dos municípios que mais desmatam a Amazônia – o que significou barreiras para crédito e risco de sanções comerciais. Três anos depois, após ações para reduzir o desmatamento, o município conseguiu livrar-se das restrições.

Mas a mancha de vilão do desmatamento não desapareceu por completo. Em seu território, 43% ocupado por reservas indígenas, há 248 propriedades rurais embargadas pelo Ibama, porque não obedecem às leis ambientais. O desafio de virar o jogo e mudar a imagem tem mobilizado prefeitura, fazendeiros, empresas, sindicatos e organizações não governamentais em torno de soluções. Na iniciativa “Querência + Paisagens Sustentáveis”, o plano é recuperar 2,7 mil hectares de mata na beira de rios até 2019, para que as propriedades sejam desembargadas e possam produzir. “Queremos trabalhar com segurança, porque é possível conciliar conservação ambiental e produção agrícola”, enfatiza Marcelo Marinho, presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

Não por acaso a sigla APP, Área de Preservação Permanente [3], virou hit no vocabulário por aquelas bandas – inclusive entre os produtores rurais mais antigos e resistentes. De igual modo, o termo “restauração florestal” se torna mais presente em região onde para muitos a grandeza da floresta parecia não ter fim. Em meio ao milharal que aguarda a colheita para dar lugar à soja a partir de novembro, o fazendeiro Neuri Wink é taxativo: “Nenhum produtor vai querer colocar mato de volta em terras produtivas de alto valor e ótimo relevo, clima e solo para agricultura, mas a preservação de nascentes não se discute”. Como um dos pioneiros que desbravaram a região, Wink deixou a cidade natal de Victor Graeff (RS), de colonização alemã e italiana, e chegou ao novo eldorado amazônico em 1988. “Antes podíamos desmatar até 80% da área, em algumas situações”, conta o produtor, dono da Fazenda Certeza – “certeza de que com muito trabalho faríamos acontecer”.

Marcada pela tradição gaúcha do cooperativismo e pelos valores da comunidade luterana, a aventura produtiva na floresta exigiu investimento em estrada, energia, banco, hospital, escola, telefone. “Quando cheguei, as ruas estavam apenas demarcadas no chão”, diz Wink, que inicialmente ocupou 670 hectares e hoje tem área três vezes maior. Cerca de 30% é mata que protege a beira do Rio Betis. “Aqui tem um jatobá e mais na frente tamboril, mamoninha e ipê-roxo”, aponta o produtor, ao mostrar a sua APP com árvores já altas após seis anos de recuperação.

Durante o trabalho, baseado no plantio de sementes e mudas, nascentes antes sufocadas por pastagens minaram. Apesar disso, o antigo fazendeiro é resistente quanto ao benefício da floresta para o clima: “O desafio está em empregar práticas de conservação do solo, nosso maior patrimônio”. Se alguns fazem a restauração florestal apenas para cumprir a lei e evitar encrenca com os órgãos ambientais, outros enxergam ganhos a longo prazo. “É melhor para todos usar menos solo sem derrubar tudo”, recomenda Cláudio Dalbello, produtor no Assentamento Pingo D’água, em Querência, ao ver a situação do vizinho “que hoje nem sequer tem madeira para colocar uma antena de TV”. Com auxílio do filho, Cristian Mariani, formado em gestão ambiental, o proprietário implantou o Sistema Agroflorestal (SAF) [4] com espécies frutíferas. E a chegada da energia elétrica permitiu puxar água para o gado beber longe do rio. “A APP foi restaurada e cercada; ninguém mexe.”

No Assentamento Brasil Novo, Armando Menin, dono do Sítio Modelo, mantém soja e gado em consórcio com seringueiras e uma floresta de espécies frutíferas e madeireiras plantada onde antes só tinha pasto. O produtor fornece frutas para o proprietário vizinho, Aldo da Rosa, fazer o beneficiamento em polpa e assim garantir renda o ano todo. “O clima mudou e quem só plantou soja está sofrendo”, afirma Menin, que se fixou na Amazônia por meio de grilagem [5] de terras, desmatou e vendeu a área para conseguir o atual lote, onde hoje tem soja, pupunha, caju, seringueira, pequi e mangaba. “Quem não plantou árvores para diversificar a renda e viver melhor, além de não ter sombra e fruta para fazer um suco, está trabalhando de peão nas grandes fazendas”, diz Rosa, ao se referir à realidade socioambiental nos assentamentos rurais [6].

“É preciso fortalecer a agricultura familiar, pois há 40 mil hectares de soja plantados em assentamentos da localidade”, conta Cecilia Gonçalves Simões, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A instituição dá apoio técnico ao município para a governança socioambiental, mapeamento dos passivos e elaboração de um plano participativo para solucioná-los. Uma das tarefas é o registro das propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR). “Todo mundo sai ganhando quando o território inteiro é reconhecido pela legalidade e sustentabilidade”, completa Simões.

Na Fazenda Tanguro [7], onde o Ipam mantém uma base científica, experimentos avaliam a eficiência de seis diferentes métodos de restauração florestal: plantio de sementes nativas; cultivo de mudas; regeneração natural sem intervir na mata; e transposição de folhas para cobrir o solo e recuperar áreas degradadas, por exemplo. Também são formadas “ilhas de vegetação”, onde os esforços de plantio se concentram em um ponto central, para se obter uma resposta mais rápida, com posterior aumento por meio de dispersão de sementes. Por fim, em outra parcela foram instalados “poleiros” de madeira para facilitar o pouso de aves que comem os frutos e espalham as sementes.

Nessa linha, pesquisadores estudam no local o papel dos mamíferos, especialmente o das antas, na regeneração natural da floresta. Elas são monitoradas por câmeras fotográficas em área degradada por fogo e a cada três meses as fezes são coletadas para análise. Em 62 amostras, foram encontradas cerca de 2,7 mil sementes de vários tipos. Isso permite inferir como os serviços ambientais podem ser comprometidos com o declínio das antas decorrente da caça e do desmatamento. Assim, ações para conservação da espécie poderão ser estratégicas no contexto de um futuro mercado de crédito de carbono e de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).

Em paralelo, há pesquisas sobre como o uso da terra interfere no clima da região e sobre qual a função das matas para a proteção de nascentes e para a dinâmica de nutrientes do solo nos cultivos. “O objetivo é fornecer elementos científicos para a tomada de decisão e políticas públicas”, explica o pesquisador Divino Silvério. “Já existe conhecimento, mas falta pôr em prática por meio de incentivos, porque o custo do que dá certo é alto.”

O movimento de Querência integra-se ao plano estadual de até 2020 repor 2,9 milhões de hectares de floresta – área superior ao território de Sergipe – como medida-chave para Mato Grosso cumprir o que apresentou à ONU na reunião de Paris sobre clima, em dezembro. Em abril, foi criado um comitê para colocar as metas em prática. “Será necessário definir áreas críticas e fomentar a cadeia produtiva da restauração, prevendo planos regionais e modelos que gerem retorno financeiro”, afirma Elaine Corsini, representante da Secretaria de Estado do Meio Ambiente.

“Com o novo Código Florestal, as regras se tornaram claras e os produtores ficaram mais abertos ao diálogo para a adequação, mas é preciso acelerar a validação do CAR para se saber quanto será recuperado e como”, avalia Lucélia Avi, analista de meio ambiente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato).

As ações compreendem também a redução de conflitos fundiários. “O compromisso estadual atraiu o interesse de investidores internacionais, entre eles o governo norueguês”, revela Daniela Mariuzzo, representante do IDH – instituição holandesa que investe na garantia de origem sustentável para a soja que entra na Europa pelo Porto de Roterdã.

Segundo Laura Antoniazzi, pesquisadora da Agroicone, “as soluções devem acomodar as projeções de crescimento da produção agropecuária [8]”. Assim, considerando a restauração florestal e técnicas para maior produção sem desmatamento, o investimento necessário para atingir as metas estaduais chega a US$ 9 bilhões em dez anos – custo que pode ser bancado pelo retorno financeiro dos projetos. “Para ser viável, a reposição de árvores tem de ser incorporada à conta da atividade produtiva principal, e não vista como uma despesa isolada.”

Plantar árvore não é tão simples como se imagina. A ênfase deve estar na busca por “paisagens integradoras e inteligentes”, conforme diz Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA). Mais que isso: na Amazônia, “é necessário superar o lugar-comum de dizer que a floresta se regenera sozinha”. Isso depende da região, do relevo, do clima e do uso anterior do solo. Estudos já comprovaram: em áreas de antigas pastagens, conforme o estágio de degradação, só cresce naturalmente o capim. Ele precisa ser controlado e substituído por árvores nativas. “Devemos olhar para o que já está dando certo”, recomenda Junqueira, ao se referir à técnica de semeadura direta ou “muvuca”, em que ocorre o plantio de um mix de sementes – e não de mudas – com viabilidade técnica, maior aderência cultural e menor custo [9].

A inovação se desenvolveu nos últimos dez anos a partir de uma demanda dos índios: a proteção dos rios que correm no Parque Indígena do Xingu, cujas nascentes – situadas fora da reserva – encontravam-se ameaçadas pela pecuária extensiva. A campanha Y Ikatu Xingu se desdobrou no trabalho que hoje mobiliza 420 coletores indígenas e agricultores familiares ligados à Associação Rede de Sementes do Xingu, com capacidade produtiva de semear 500 hectares por ano. E inspira soluções para o País plantar floresta e cumprir as metas climáticas.

Experiências se multiplicam no Pará

Com 84 mil quilômetros quadrados, o dobro da área do Estado do Rio de Janeiro, o município de São Félix do Xingu, no Sul do Pará, tem o maior rebanho do País – 2,2 milhões de cabeças de gado. Foi um dos campeões do desmatamento na Amazônia e agora se destaca como palco de projetos que demonstram ser possível produzir com menor impacto ambiental. “Na região, disseminar boas práticas na cadeia da pecuária é o caminho para reduzir o desmatamento e promover a restauração florestal”, analisa Francisco Fonseca, coordenador da iniciativa Pecuária Sustentável – do Campo à Mesa, da The Nature Conservancy (TNC).

Em troca de assistência técnica e de reconhecimento por parte de compradores como a indústria frigorífica Marfrig e a rede varejista Walmart, parceiros do projeto, produtores rurais assumiram o compromisso de zerar o desmatamento, fazer o Cadastro Ambiental Rural e adotar um plano de boas práticas. As medidas incluem a recuperação de áreas degradadas para pastagem e a restauração da floresta para proteger rios e nascentes. Cerca de 1,2 mil hectares de APP estão sendo isolados do gado.

No município, uma segunda frente de trabalho mobiliza a agricultura familiar para a expansão dos cultivos de cacau como estratégia de restauração florestal nas áreas de reserva legal. A planta, nativa das regiões tropicais da América do Sul, precisa da sombra das demais árvores para crescer e produzir. “E está sendo consorciada com a pecuária de corte e leite na região”, informa Rodrigo Freire, coordenador de floresta e clima da TNC.

O objetivo é repetir na Amazônia o que aconteceu na Mata Atlântica do Sul da Bahia, onde o cacau sombreado pela floresta teve importante papel na conservação. Em São Félix do Xingu, 82 famílias de agricultores recebem auxílio técnico e estão substituindo pasto pelo fruto do chocolate, em alta no mercado. Com a produção média de 1 tonelada por hectare ao ano, é possível obter renda complementar de R$ 10 mil no período. Até 2020, o plano é expandir os atuais projetos demonstrativos e atingir 1 mil produtores, totalizando 5 mil hectares de cacau.

[1] Palavra típica do vocabulário gaúcho que significa lugar amado; nostalgia e saudade da terra natal

[2] Atualizada pela última vez em 2013, a lista contém 41 municípios, a maioria de Mato Grosso

[3] Situada na beira de rios, ao redor de nascentes e em topos de morro, tem a função ambiental de preservar os recursos hídricos, evitar erosões e proteger a biodiversidade e o solo

[4] São consórcios de culturas agrícolas com espécies arbóreas que podem ser utilizados para restaurar florestas e recuperar áreas degradadas

[5] Ocupação ilegal de terras públicas para obtenção fraudulenta de documento de posse com aparência de legalidade

[6] Na Amazônia, há 450 mil famílias em 3.450 assentamentos, responsáveis por um terço do desmatamento da região

[7] Pertencente ao grupo Amaggi, a propriedade tem 82 mil hectares, 46% ocupados por lavoura

[8] Em Mato Grosso, a área de grãos deverá adicionar 3 milhões de hectares até 2025 e o crescimento da produção de carne está projetado em 40%, sem aumento de pastagem

[9] O valor das sementes, plantio e manutenção da área por três anos é de R$ 5,4 mil por hectare, 50% inferior ao custo mínimo do cultivo tradicional de mudas

 

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