Leila Harfuch e Gustavo Dantas Lobo
O Plano Safra e o Plano Safra da Agricultura Familiar 2023/2024 trouxeram algumas novidades importantes. Além do maior volume de recursos da história da política agrícola (R$ 442 bilhões para a agricultura empresarial e familiar), trouxe mecanismos para promover atributos socioambientais da produção agropecuária e impedir ilegalidades na concessão de crédito.
Este documento apresenta uma análise dos principais pontos dos Planos voltados à sustentabilidade do setor agropecuário, as principais alterações provenientes das resoluções do Conselho Monetário Nacional – CMN publicadas no dia 29 de junho de 2023 (que serão incorporadas no Manual de Crédito Rural – MCR), além de destacar algumas lacunas identificadas e uma visão de futuro para a política agrícola.
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Recursos disponibilizados
Os recursos a serem disponibilizados virão, em boa parte, do aumento da exigibilidade dos depósitos à vista (inclusive para a agricultura familiar) e das Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), além de recursos livres. Estes, aliás, vêm aumentando a participação no volume total de recursos contratados (estimados em 41% de R$ 323 bilhões tomados em 2022/2023, ante 15% dos R$ 170,5 bilhões contratados em 2017/2018).
Do volume anunciado pelo Plano Safra empresarial (médios e grandes produtores rurais), os recursos para operações de crédito de investimento somam R$ 92,1 bilhões, sendo R$ 61 bilhões com recursos controlados. Para custeio e comercialização, dos R$ 212,12 bilhões anunciados, serão R$ 186,42 bilhões com recursos controlados. Para a agricultura familiar, inteiramente operada com recursos controlados, R$ 71,6 bilhões foram anunciados para o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, além de um somatório de R$ 6,1 bilhões para ações como compras públicas, assistência técnica e extensão rural, Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), Garantia-Safra e Proagro Mais.
Ainda não foi publicada a Portaria do Ministério da Fazenda que autoriza o pagamento de equalização de taxas de juros em financiamentos rurais concedidos no âmbito do Plano Safra 2023/2024 até o fechamento deste documento.
Impedimentos sociais, ambientais e climáticos
Para que o produtor possa contratar o crédito rural, deverá cumprir com requisitos sociais, ambientais e climáticos dispostos na Resolução BCB nº 140/2021 Resolução CMN nº 5081/2023. Essas normas foram incorporadas na Seção 9 do Capítulo 2 do Manual de Crédito Rural (MCR 2-9). Entre as principais mudanças, vale destacar:
1 – A observância das restrições de acesso a crédito relacionadas aos aspectos socioambientais para todo o imóvel rural, não apenas do empreendimento objeto de financiamento (a partir de 03/07/2023);
2 – O Cadastro Ambiental Rural – CAR cancelado ou suspenso impossibilitará a tomada de crédito (a partir de 01/08/2023);
3 – Inclusão dos embargos ambientais emitidos pelos órgãos estaduais, não apenas federais e não somente para o bioma Amazônia, mas para todos os biomas (a partir de 01/01/2024);
4 – Não será concedido crédito rural a empreendimento situado em imóvel rural total ou parcialmente inserido em Floresta Pública Tipo B (Não Destinada) registrada no Cadastro Nacional de Florestas Públicas do Serviço Florestal Brasileiro, exceto para imóveis rurais com título de propriedade e para aqueles com até 4 (quatro) módulos fiscais com pedido de regularização fundiária analisado e deferido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra (também a partir de 01/01/2024).
Ainda se espera um passo maior dos impedimentos na concessão de crédito para incluir a verificação do desmatamento ilegal nos biomas, não embargados e sem autorização dos órgãos competentes, preferencialmente com a incorporação e verificação automática de dados oficiais (como o desmatamento divulgado pelo PRODES e DETER do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE) no SICOR – Sistema de Operações de Crédito Rural e do Proagro especialmente após 22/07/2008, considerando a data de corte da Lei no 12.651/2012 – Lei de Proteção da Vegetação Nativa ou Código Florestal.
Nesse sentido, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES incorporou dados de desmatamento organizados pelo MapBiomas desde fevereiro de 2023 (Circular SUP/ADIG nº 57/2022-BNDES), suspendendo créditos quando há indícios de desmatamento, “sendo vedadas operações onde seja identificado o desmatamento sem comprovação de regularidade da situação”.
As informações requeridas são a Autorização para Supressão de Vegetação Nativa – ASV, Projeto de Recuperação de Área Degradada – PRAD, Termo de Ajustamento de Conduta – TAC ou outro documento que comprove a regularidade da supressão. Ainda, se houver desmatamento após a concessão do crédito, a liberação de recursos será suspensa e a instituição financeira deverá liquidar a operação antecipadamente caso não se comprove a regularidade em um período de doze meses. Inclusive, todas essas informações poderiam ser automatizadas e unificadas para facilitar essa verificação e evitar suspensões indevidas.
Ou seja, o que se observa é um esforço na integração entre instrumentos de política agrícola e mecanismos de gestão da política ambiental. O entendimento de que essas políticas devem ser complementares é fundamental para a melhoria da subscrição dos riscos socioambientais e climáticos do sistema financeiro.
Condições gerais para o crédito rural
A Resolução CMN nº 5078/2023 apresenta alterações nas condições gerais para o crédito rural, dispostas na Seção 1 do Capítulo 2 do Manual de Crédito Rural (MCR 2-1). As exigências para a concessão de crédito rural para o financiamento de atividades agropecuárias nos municípios que integram o bioma Amazônia (Item 11) também foram ampliadas para o “imóvel rural onde situa o empreendimento objeto do crédito rural”, exceto para pescadores artesanais e extrativistas que não sejam proprietários do imóvel rural e que não sejam ocupantes de Unidades de Conservação: inexistência de embargos de uso econômico de áreas desmatadas ilegalmente no imóvel; inexistência de restrições ao beneficiário assentado por prática de desmatamento ilegal; da veracidade e da vigência de documentos mediante conferência junto ao órgão emissor.
Na prática, o que foi disposto na Resolução CMN nº 5081/2023 descrita nos parágrafos anteriores em relação aos embargos ambientais vai além do disposto nas condições gerais para o crédito rural concedido a beneficiários do bioma Amazônia, ao incluir os embargos realizados por órgãos estaduais (não somente federais e demais verificações), especialmente à relacionada ao não financiamento quando houver sobreposição do CAR com florestas públicas não destinadas. Esta verificação, inclusive, poderia ser feita pelo próprio Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural – SICAR. Dados mapeados pela Agroicone em 2021 sugerem que há 19 milhões de hectares de CAR sobrepostos a florestas públicas não destinadas, o que exige, na prática, ações que permitam controlar o uso e ocupação do solo e a tomada de crédito por atividades ilegais.
Nas condições gerais, ainda não foi incluída a observância do ZARC – Zoneamento Agrícola de Risco Climático para a concessão de crédito de custeio de forma geral. Apenas manteve-se a exigência quando o beneficiário aderir ao Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – Proagro (médios produtores) e Proagro Mais (agricultura familiar), para acessar o bônus de desconto do Programa de Garantia de Preços para a Agricultura Familiar – PGPAF (lista de culturas), aos beneficiários do Crédito para a Recuperação de Cafezais Danificados do Funcafé (MCR 9-7-1-“d”) (com alteração pela Resolução CMN 5078 de 29 de junho de 2023). Além disso foi incluída na Resolução CMN nº 5080/2023 a observância do ZARC para expandir as condições de crédito de custeio do Pronaf Microcrédito Produtivo Rural – “Grupo B”, assim como o direito ao bônus de adimplência (também condicionado à adesão do Proagro Mais).
Incentivos para a sustentabilidade ambiental da agropecuária.
Entre os incentivos para promover a sustentabilidade da produção agropecuária, destaca-se a inclusão como item financiável de custeio (MCR 3-2) “despesas para colocação de brincos numerados e cápsulas de microchip nos animais”, fomentando instrumentos de rastreabilidade na produção pecuária. Também foi incluído o financiamento de “despesas para infraestrutura de rede, de plataformas e de soluções digitais de gestão de dados e conectividade, quando relacionadas à atividade financiada”, promovendo a agricultura digital e melhoria da gestão produtiva e da propriedade.
A capacidade de influência dos instrumentos de política agrícola na gestão ambiental do território esbarra nos desafios da adequação ao Código Florestal, tendo a validação do CAR pelos estados um papel crucial. A inclusão de incentivos para os beneficiários do crédito rural cujo empreendimento financiado esteja em imóvel rural que possui CAR analisado (em conformidade com Código Florestal), em regularização ambiental, em conformidade e passível de emissão de Cota de Reserva Ambiental – CRA) já estava vigente na safra 2022/2023.
A mudança é que haverá desconto (mínimo) de 0,5 ponto percentual nas taxas de juros de custeio (exceto para as operações no âmbito do Pronaf e das cooperativas), a partir de 2 de outubro de 2023, e não mais o aumento do limite de crédito de custeio de até 10% (o que dependia também da avaliação da instituição financeira para conceder tal aumento e não poderia ultrapassar os limites máximos dispostos por beneficiário). Quando as operações de crédito de custeio forem com recursos obrigatórios ou com recursos subvencionados pela União, o desconto máximo será de 0,5 ponto percentual sobre a taxa máxima de custeio, de acordo com o perfil do beneficiário.
Por mais que este incentivo na prática afete apenas uma pequena parcela de imóveis rurais, ele emerge do Artigo 41 do Código Florestal, cuja implementação é muito esperada pelos produtores rurais, e sinaliza a relevância de aprofundar a validação dos CAR e a implementação dos Programas de Regularização Ambiental – PRA nos estados. Vale ponderar o papel do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos para orientar e acelerar a análise dinamizada do CAR e o avanço efetivo da adequação com base na adesão aos PRA que precisa sair do papel.
Os incentivos da política agrícola também foram incorporados em algumas linhas de financiamento, por meio de condições diferenciadas. Para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, a menor taxa de juros de custeio de 3% a.a. incluiu o cultivo de produtos da sociobiodiversidade (listados na Seção 6 no Capítulo 7 do MCR, Resolução CMN no 5082), produtos inseridos em sistemas de produção de base agroecológica ou em transição para estes sistemas e sistemas orgânicos de produção. Atualmente, existem quase 200 mil produtores cadastrados e certificados como orgânicos, sejam cooperativas ou pessoas físicas que podem se beneficiar prontamente de uma iniciativa dessa natureza (desde que sejam agricultores familiares).
O fomento à produção de base agroecológica na Agricultura Familiar não se limita aos descontos nas taxas de juros. Estão programados R$ 50 milhões para subvenção econômica aos produtos da sociobiodiversidade por meio da Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade – PGPM-Bio. Além disso, o Pacto Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER, anunciado no Plano Safra da Agricultura Familiar, prevê a destinação de recursos para a estruturação da assistência técnica voltada a uma produção agroecológica, pautada na extensão e pesquisa e de forma regionalizada. Ao todo, estão previstos R$ 200 milhões para ATER na agricultura familiar.
Políticas de ATER são essenciais para promover a transição de tecnologias e práticas como as preconizadas pelo Plano ABC+. As linhas de crédito de investimento do Pronaf rotuladas na safra 2022/2023 como “Pronaf ABC+” se mantiveram como tal (Resolução CMN no 5080). Houve a redução nas taxas de juros das linhas rotuladas “Pronaf ABC+” e para o Pronaf Jovem e o Pronaf Mulher, em comparação às demais linhas de crédito de investimento, e o Plano também incluiu o acesso a crédito da agricultura familiar de indígenas e quilombolas (Pronaf A). Adicionalmente, foram alterados os limites de crédito por beneficiário para as linhas Pronaf ABC+ Floresta e Semiárido.
O Programa ABC+ para médios e grandes produtores foi alterado para “RenovAgro” (Resolução CMN no 5079). O RenovAgro inclui como recuperação de áreas de pastagens degradadas a conversão para outros usos (RenovAgro Recuperação e Conversão) visando estimular a expansão da agricultura sobre áreas de pastagens degradadas. Inclusive, conforme Resolução CMN no 5082/2023, com taxa de juros de 7% a.a., equivalente ao RenovAgro Ambiental (para regularização ambiental das propriedades rurais, inclusive recuperação de Reserva Legal, Áreas de Preservação Permanente – APP, aquisição de CRA etc.).
Os demais subprogramas do RenovAgro terão taxa de juros de 8,5% a.a., as mesmas do Plano Safra 2022/2023, mas o valor anunciado para o RenovAgro soma R$ 6,93 bilhões, 12% superior ao anunciado no plano anterior, este que já foi recorde histórico.
Vale ressaltar que parte dos recursos obrigatórios (exigibilidades) podem ser alocados no RenovAgro, norma que vem se mantendo desde a safra 2021/2022 (Resolução CMN nº 4917/2021). Entretanto, o uso desta fonte de recursos ainda é muito pequeno por parte das intuições financeiras para o Programa ABC+ (agora RenovAgro), somando menos de R$ 600 milhões nos últimos dois anos safra. A partir de estimativa dos autores, só na safra 2022/2023 o valor autorizado foi de R$ 1,8 bilhão que seria desta fonte de recursos, a partir do valor anunciado e aqueles descritos na Portaria do Ministério da Economia nº 6.454/2022 sobre a equalização de taxa de juros para o crédito rural.
Interessante observar também que boa parte dos recursos provenientes de depósitos à vista foram alocados, em grande parte, após a suspensão das operações do Programa ABC+ pelo BNDES, devido ao comprometimento dos recursos equalizáveis autorizados para essas operações indiretas. Uma das razões para a baixa alocação de recursos de depósitos à vista, dando preferência para outras fontes de recursos, deve-se ao longo período de carência e de retorno dos projetos de investimento financiados, trazendo um alto custo de oportunidade para as instituições financeiras, além dos custos de transação.
Em relação aos itens financiáveis pelo RenovAgro, foi incluída a “realocação de estradas internas das propriedades rurais para fins de controle de erosão, adicional à finalidade de adequação ambiental”. Houve também uma alteração importante no financiamento para a aquisição de bovinos, bubalinos e caprinos, para finalidade de reprodução, recria e terminação, e de sêmen, óvulos e embriões dessas espécies, limitado a 40% do valor financiado, condicionados à certificação de material genético e registro genealógico de matrizes e reprodutores para a pecuária de corte e de leite. Esta alteração direciona para o melhoramento genético dos rebanhos, visando ganhos de eficiência produtiva.
Um olhar especial deve ser dado aos Fundos Constitucionais de Financiamento. A Resolução CMN nº 5083/2023 estabelece as taxas de juros e limites de crédito com essas fontes de recursos. As condições continuaram diferenciadas no caso em que o financiamento incluir conservação e proteção do meio ambiente, recuperação de áreas degradadas ou alteradas, recuperação de vegetação nativa e desenvolvimento de atividades sustentáveis no âmbito da agropecuária de baixo carbono (ABC) e de áreas com produção certificada de baixa emissão ou neutralidade de carbono, projetos para inovação tecnológica nas propriedades rurais, incluindo a geração de energia por fontes renováveis, ampliação, modernização, reforma e construção de armazéns.
Entretanto, ainda não foram alteradas as regras de enquadramento de porte de produtores, muito diferentes e superiores àquelas vigentes para o Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR com as demais fontes de recursos, gerando não só distorções na alocação de crédito rural, mas também a não compatibilidade com os objetivos dos Fundos Constitucionais de Financiamento. Ainda, espera-se um maior alinhamento das linhas de crédito operadas pelo Fundos com as do SNCR. Ambas as análises estão destacadas na Nota Técnica 3 do documento com propostas para o Plano Safra 2023/2024.
O movimento mais inovador do Plano Safra 2023/2024 é o anúncio do abatimento na taxa de juros de (no mínimo) 0,5 ponto percentual nas operações de custeio para beneficiários que adotam práticas ambientalmente sustentáveis, apesar de não constar nas resoluções do CMN publicadas em 29 de junho de 2023.
Isso se deve, possivelmente, às discussões em curso entre os órgãos e especialistas sobre a comprovação da adoção de boas práticas e de suas respectivas adicionalidades. Por exemplo, a adoção de sistemas de plantio direto é amplamente difundida entre os produtores de grãos, sendo estes grandes tomadores de crédito de custeio. Considerando que foram tomados R$ 88 bilhões para custeio de soja e milho na safra 2022/2023, representando 46% do total (até o fechamento deste documento) este incentivo pode produzir um impacto importante na subvenção econômica do crédito de custeio (exceto com recursos obrigatórios e outros não equalizáveis).
Por outro lado, o grande desafio é avaliar a forma como esta prática está sendo, de fato, implementada no campo. Por exemplo, o sistema de plantio direto com soja e milho 2ª safra e até braquiária como 3ª safra seria suficiente para o abatimento na taxa de juros? Quantos anos a produção ocorreu sem nenhum revolvimento do solo? Quantos cultivos, espécies vegetais e famílias botânicas foram utilizadas nos últimos 3 anos agrícolas?
Apesar de se esperar pragmatismo na norma e fácil verificação, para a adoção de práticas sustentáveis não é tão simples assim. Considerando que a maior parte das lavouras de grãos plantados são de sequeiro e sendo a seca o principal evento para o pagamento de indenizações tanto do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – Proagro quanto do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural – PSR nos últimos 5 anos safra, o ZARC NM (Zoneamento Agrícola de Risco Climático – Níveis de Manejo), que classifica o risco climático considerando o manejo do solo e a resiliência em relação a estresse hídrico, pode ser um dos caminhos. Mas ainda persistem complexidades para a verificação de seus critérios técnicos.
No conjunto de propostas para o Plano Safra 2023/2024 que foram apresentadas pela Agroicone, aprimoradas e endossadas pela Força Tarefa de Finanças Verdes da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, sugerimos alguns caminhos:
1 – Observância do ZARC como critério obrigatório para o crédito de custeio (que poderíamos começar com abatimento na taxa de juros após o final do contrato de custeio quando o empreendimento financiado cumpriu o ZARC);
2 – Condição diferenciada para beneficiários que apresentem apólice de seguro rural vigente com ou sem subvenção econômica (também poderá ter o abatimento no final do contrato de crédito, evitando cancelamentos de apólices, direcionando incentivos para a gestão integrada de riscos na agropecuária);
3 – Observância da qualidade das pastagens dos contratos de crédito de custeio para aquisição de bovinos, quando o sistema de produção é baseado a pasto (utilizando o Atlas da Pastagem atualizado anualmente pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento – Lapig da Universidade Federal de Goiás);
4 – A observância do Atlas de Irrigação da Agência Nacional Águas – ANA em operações de custeio para lavouras irrigadas;
5 – Avaliação de atributos sobre a propriedade e práticas adotadas considerando os campos já disponíveis para preenchimento no SICOR, definindo as exigências para conceder o abatimento do crédito rural de acordo com o empreendimento financiado (lista disponível no documento na Nota Técnica 1 com as propostas para o Plano Safra 2023/2024).
De todo modo, é preciso entender essa iniciativa do Plano Safra 2023/2024 (agricultura empresarial) como um primeiro passo, mesmo que abaixo do desejável para os critérios de sustentabilidade do imóvel rural, que precisa ser implementado e aprimorado ao longo do tempo. Os custos de transação irão aumentar no curto prazo, mas à medida em que mais informações dos imóveis rurais e das práticas adotadas são coletadas e informadas ao SICOR, maior será o alinhamento do crédito rural com atributos de sustentabilidade e maiores deverão ser os benefícios concedidos ao produtor rural. Ainda, com o open banking, o produtor rural sendo detentor de suas informações terá incentivo para concedê-las às instituições financeiras, ampliando a competição do mercado que queria atrair aqueles que adotam as melhores práticas de produção, além de fomentar as finanças sustentáveis de forma geral.
Lacuna: e os instrumentos de gestão de risco?
Outro ponto importante que merece destaque é a ausência de anúncios envolvendo os instrumentos de gestão de riscos climáticos. Observou-se apenas o anúncio de que as alíquotas do Proagro Mais vão cair 50% para a produção de alimentos (fato este que deve ser monitorado com atenção, uma vez que a sinistralidade observada do Proagro e a exposição ao risco moral são questões observadas nos últimos anos). Não houve anúncio sobre recursos para suplementar o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural – PSR no ano de 2023, além de nenhuma movimentação em torno da agenda de gestão de riscos.
Adicionalmente, é necessário a continuação do processo virtuoso de melhorias do ZARC observado na atualização das metodologias, da criação do ZARC Pro (baseado em índices de produtividade) e do ZARC Níveis de Manejo (que incorpora boas práticas na definição do risco), além de outros aprimoramentos como aqueles apresentados na Nota Técnica 2 com propostas para o Plano Safra 2023/2024.
Ademais, ainda não se sabe se o anúncio feito no Plano Safra 2022/2023 de que beneficiários do Programa ABC+ (agora RenovAgro) teriam maior subvenção ao prêmio do PSR realmente valerá para esta safra. Iniciativas dessa natureza são fundamentais no entendimento de que instrumentos de gestão de risco devem ser complementares à adoção de boas práticas agropecuárias. Recentemente, a Agroicone lançou um estudo que explora exatamente essa possível relação de complementaridade, e pode ser acessado aqui.
O seguro rural tem papel fundamental no enfrentamento dos impactos de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e para a própria longevidade dos incentivos da política de crédito, evitando renegociações de dívidas quando houver adversidades do clima.
Visão de futuro para os Planos Safra: considerações finais
O crédito rural é o principal instrumento da política agrícola brasileira e é o trampolim para estimular mudanças que permitam aprimorar os sistemas produtivos. Avançar na integração de tecnologias e práticas que favoreçam a adaptação às mudanças climáticas e a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) é um clássico exemplo, também buscado por importantes países agrícolas, como Estados Unidos e União Europeia.
Para o enfrentamento das questões climáticas na agropecuária, é necessário o compartilhamento de informações, riscos e custos de transação entre os elos das cadeias de valor. Alinhar os incentivos com o Código Florestal e com práticas que promovam baixa emissão de carbono e resiliência climática, ancorada no Plano ABC+, é papel da política agrícola. As instituições financeiras precisam capturar as informações e compartilhá-las no SICOR, tanto para conceder os incentivos, quanto para sua própria gestão de riscos climáticos e socioambientais.
Ainda há muito a avançar, mas sempre é necessário dar o primeiro passo e incorporar aprimoramentos ao longo do tempo. Além dos incentivos para médios e grandes produtores, é preciso ter um olhar para a agricultura familiar considerando suas heterogeneidades e regionalidades, trabalhando com as linhas de crédito e as fontes de recursos disponíveis que tenham impacto relevante na produção e ao beneficiário(a), mas com menor impacto na subvenção econômica, com destaque para os recursos dos Fundos Constitucionais de Financiamento.
Dessa forma, num futuro próximo, o mainstream da produção agropecuária será comprovadamente resiliente e de baixa emissão de carbono, e os incentivos da política agrícola, se o cenário macroeconômico ajudar, serão cada vez mais direcionados para as “falhas de mercado” e para a gestão de riscos climáticos não totalmente cobertos por incorporar as melhores práticas produtivas.